julho 14, 2021

Ao escrevermos, como evitar que escrevemos sobre aquilo que não sabemos, ou que sabemos mal? Gilles Deleuze

 “(...). Ao escrevermos, como evitar que escrevemos sobre aquilo que não sabemos, ou que sabemos mal? É necessariamente nesse ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nessa ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois ou, antes, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio. Falamos, pois de ciência, mas de uma maneira que infelizmente, sentimos não ser científica.” Gilles Deleuze em “Diferença e repetição”.

julho 07, 2021

... para cuidar das nossas feridas, ao mesmo tempo aprendendo a não ferir os outros de Rebecca Solnit

 "Outras épocas e outras culturas costumavam fazer perguntas diferentes das que fazemos agora: o que de mais significativo você pode fazer com sua vida? Qual é sua contribuição para o mundo ou para sua comunidade? Você vive de acordo com os seus princípios? Qual será seu legado? O que significa sua vida? Talvez a nossa obsessão pela felicidade seja uma maneira de não responder a essas outras perguntas, uma maneira de ignorar a amplitude que as nossas vidas podem ter, o resultado que o nosso trabalho pode trazer, a abrangência que o nosso amor pode alcançar. Há um paradoxo no cerne da questão da felicidade. 

“Algum de vocês já foi ferido pela humanidade?”. 

"Riram comigo; naquele momento, percebemos que todos tínhamos as nossas esquisitices, estávamos todos no mesmo barco, e que é para isso mesmo — para cuidar das nossas feridas, ao mesmo tempo aprendendo a não ferir os outros — que estamos aqui. 

"E também pelo amor, que vem sob inúmeras formas e pode ser dirigido a inúmeras coisas. Há muitas perguntas na vida que vale a pena fazer, mas talvez, se formos sábios, nós possamos entender que nem toda pergunta precisa de resposta."

"A mãe de todas as perguntas: Reflexões sobre os novos feminismos" de Rebecca Solnit, Denise Bottmann tradutora

junho 11, 2021

Depressão em "Juntos: Os rituais, os prazeres e a política da cooperação" de Richard Sennett

"Acima de tudo, sua visão do luto foi determinante na crença de Freud no trabalho. O trabalho manda um chamado de convocação de volta ao mundo, fora da história emocional daquele que trabalha. Quando se atende a esse chamado, o moral é recuperado, na forma de energia pessoal; levanta-se um peso fisiológico e psíquico ao mesmo tempo. Em vez de prometer “bem-estar”, o trabalho promete um novo engajamento. Mas não se trata de um novo engajamento social: os atos cooperativos em si mesmos não têm grande importância no pensamento de Freud. 

"Poderíamos encarar o luto como uma espécie de conserto. Os tipos de conserto explorados no capítulo 7 podem esclarecer melhor essa ideia. Freud não encarava os traumas de uma vida da mesma maneira que um restaurador de porcelana encararia um vaso quebrado."

Sennett, Richard. Juntos: Os rituais, os prazeres e a política da cooperação (p. 324). Record. Edição do Kindle. 

 "O depressivo que quer reatar com a vida cotidiana sabe que não poderá simplesmente fazer recuar o relógio. Esta noção se aplica a qualquer refugiado que tenha sobrevivido bem no exílio — em luto pelo passado, com certeza, mas fugindo ao controle férreo da nostalgia, para usar a expressão de Hannah Arendt, e assim construindo uma nova vida em outro lugar.12 Teologicamente, Adão e Eva sabiam que não poderiam voltar ao Jardim do Éden. O luto, assim, é uma reconfiguração que vem de dentro." (from "Juntos: Os rituais, os prazeres e a política da cooperação" by Richard Sennett)

junho 09, 2021

Juntos: Os rituais, os prazeres e a política da cooperação novo trecho (Anomia, comprometimento)

 "A anomia é um sentimento de desenraizamento, de estar à deriva. Explicando a anomia nesses termos, Durkheim procurava investigar mais fundo as consequências da exclusão; é possível que as pessoas internalizem a exclusão de tal maneira que passam a sentir que de fato não merecem muito crédito, que ela de certa forma é justificada. A repercussão íntima torna-se evidente nos indivíduos em ascensão que se sentem uma farsa nas novas circunstâncias; na literatura americana, o Jay Gatsby do romance de Fitzgerald sofre desse tipo de anomia. Mas Durkheim considerava que esse tipo de desenraizamento internalizado era muito mais disseminado. Você foi julgado pela cultura das instituições, e realmente não se adapta. O suicídio, estado de tão extremo desespero, abriu diante de Durkheim uma janela para as consequências mais comuns do distanciamento intimamente absorvido pelo indivíduo na forma da insegurança."

Sennett, Richard. Juntos: Os rituais, os prazeres e a política da cooperação (p. 326). Record. Edição do Kindle. 

O comprometimento pode ser testado de maneira direta: até que ponto você se dispõe a se sacrificar por ele? Na escala da troca social apresentada no capítulo 2, o altruísmo representa o tipo mais forte de comprometimento; Joana D’Arc subindo à fogueira por suas convicções, o soldado comum morrendo em batalha para proteger os companheiros. No outro extremo da escala, entre os predadores máximos, sejam jacarés ou banqueiros, o autossacrifício não aparece, e assim não surge oportunidade para o teste. Nas zonas humanas intermediárias, os sacrifícios acarretados pelo comprometimento são mais baralhados. A troca ganhar-ganhar em um acerto de negócios requer que todas as partes abram mão de determinados interesses a bem de um acordo benéfico para todos; uma coalizão política exige calibragem semelhante. A troca diferenciada, o encontro esclarecedor, não envolve autossacrifício, mas tampouco implica levar a melhor sobre outra pessoa, exigindo que abra mão de algo.

Sennett, Richard. Juntos: Os rituais, os prazeres e a política da cooperação (p. 328). Record. Edição do Kindle. 

Juntos: Os rituais, os prazeres e a política da cooperação de Richard Sennett (trechos)

 "O mais importante na cooperação intensa é o fato de exigir habilidade. Aristóteles definia a habilidade como techné, a técnica de fazer com que algo aconteça, fazendo-o bem; o filósofo islâmico Ibn Khaldūn considerava a habilidade terreno específico dos artífices. É possível que você, como eu, não goste da expressão “habilidades sociais”, que parece indicar pessoas boas de conversa em um coquetel ou capazes de lhe vender coisas de que você não precisa. Mas existem habilidades sociais mais sérias. Elas podem percorrer toda a gama de ações implicadas em ouvir com atenção, agir com tato, encontrar pontos de convergência e de gestão da discordância ou evitar a frustração em uma discussão difícil. Todas essas atividades têm um nome técnico: chamam-se “habilidades dialógicas”."

Sennett, Richard. Juntos: Os rituais, os prazeres e a política da cooperação (pp. 15-16). Record. Edição do Kindle. 


“As pessoas que não observam não podem conversar.”18 Esta pílula de sabedoria de um advogado inglês remete à essência da “dialógica”. Esta expressão técnica designa a atenção e a receptividade aos outros. A tirada do advogado chama a atenção em especial para o papel do ouvinte em uma discussão. Geralmente, quando falamos das capacidades de comunicação, nós nos concentramos na melhor maneira de expor algo com clareza, apresentando o que pensamos e sentimos. De fato são necessárias habilidades para fazê-lo, mas elas são de caráter declarativo. Ouvir bem exige outro conjunto de habilidades, a capacidade de atentar de perto para o que os outros dizem e interpretar antes de responder, conferindo sentido aos gestos e silêncios, tanto quanto às declarações. Embora talvez precisemos nos conter para observar bem, a conversa que daí resultará será enriquecida, mais cooperativa, mais dialógica."

Sennett, Richard. Juntos: Os rituais, os prazeres e a política da cooperação (p. 25). Record. Edição do Kindle. 


"O bom ouvinte precisa estar atento às intenções, às sugestões, para que a conversa siga em frente. A escuta atenta gera conversas de dois tipos, a dialética e a dialógica. Na dialética, como aprendemos na escola, o jogo verbal de opostos deve levar gradualmente a uma síntese; a dialética começa na observação de Aristóteles, na Política, de que, “embora possamos usar as mesmas palavras, não podemos dizer que estamos falando das mesmas coisas”; o objetivo é acabar chegando a um entendimento comum.22 A proficiência na prática da dialética está na detecção do que poderia contribuir para esse terreno comum."

"A respeito dessa capacidade, Theodore Zeldin escreve, em um pequeno e sábio livro sobre a conversa, que o bom ouvinte detecta o terreno comum mais facilmente no que a outra pessoa presume do que no que ela diz.23 O ouvinte elabora esse pressuposto, expressando-o em palavras. Capturamos a intenção, o contexto, tratamos de explicitá-lo e falamos a respeito. Outro tipo de habilidade se manifesta nos diálogos platônicos, nos quais Sócrates se revela um excelente ouvinte ao repetir “em outras palavras” o que os debatedores declaram — mas a repetição não é exatamente o que eles haviam dito ou, na verdade, pretendido dizer. O eco na verdade é um deslocamento. Por isso é que nos diálogos de Platão a dialética não se assemelha a uma discussão, a um duelo verbal. A antítese de uma tese não é “seu cretino, você está errado!”. O que acontece é que os mal-entendidos e confrontos de interesses entram em jogo, a dúvida é posta na mesa; todos precisam então esforçar-se mais por ouvir o outro."

Sennett, Richard. Juntos: Os rituais, os prazeres e a política da cooperação (p. 31). Record. Edição do Kindle. 

“Dialógica” é uma palavra cunhada pelo crítico literário russo Mikhail Bakhtin para se referir a uma discussão que não resulta na identificação de um terreno comum. Embora não se chegue a um acordo, nesse processo de troca as pessoas podem se conscientizar mais de seus próprios pontos de vista e ampliar a compreensão recíproca."

Sennett, Richard. Juntos: Os rituais, os prazeres e a política da cooperação (p. 32). Record. Edição do Kindle. 

"Naturalmente, a diferença entre conversa dialética e dialógica não é uma questão de ou/ou. Como acontece na versão Zeldin da conversa dialética, o movimento avante na conversa dialógica vem da atenção voltada para aquilo que a outra pessoa está dando a entender, sem chegar a dizer; como no astuto “em outras palavras” de Sócrates, em uma conversa dialógica os mal-entendidos podem eventualmente contribuir para o entendimento mútuo. O cerne da capacidade de escuta, contudo, está na escolha de detalhes concretos, específicos, para levar a conversa adiante. Os maus ouvintes recuam para as generalizações em suas reações; não estão atentos àquelas pequenas frases, gestos faciais ou silêncios que abrem uma discussão. Na conversa verbal, como nos ensaios musicais, as trocas se constroem em toda a linha."

Sennett, Richard. Juntos: Os rituais, os prazeres e a política da cooperação (p. 32). Record. Edição do Kindle. 

maio 31, 2021

"Comunicação não-violenta: Técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais" Marshall B. Rosenbeg (trechos)

 "Para me fazer compreender isso, meu avô me fez desenhar uma árvore genealógica da violência, usando os mesmos princípios usados nas árvores genealógicas das famílias. Seu argumento era que eu entenderia melhor a não-violência se compreendesse e reconhecesse a violência que existe no mundo. Toda noite, ele me ajudava a analisar os acontecimentos do dia – tudo que eu experimentara, lera, vira ou fizera aos outros – e a colocá-los na árvore, sob as rubricas “física” (a violência em que se tivesse empregado força física) ou “passiva” (a violência em que o sofrimento tivesse sido mais de natureza emocional). Em poucos meses, cobri uma parede de meu quarto com atos de violência “passiva”, a qual meu avô descrevia como mais insidiosa que a violência “física”. Ele explicava que, no fim das contas, a violência passiva gerava raiva na vítima, que, como indivíduo ou membro de uma coletividade, respondia violentamente. Em outras palavras, é a violência passiva que alimenta a fornalha da violência física. Em razão de não compreendermos ou analisarmos esse conceito, todos os esforços pela paz não frutificam, ou alcançam apenas uma paz temporária. Como podemos apagar um incêndio se antes não cortamos o suprimento de combustível que alimenta as chamas?" Arun Gandhi


"A não-violência significa permitirmos que venha à tona aquilo que existe de positivo em nós e que sejamos dominados pelo amor, respeito, compreensão, gratidão, compaixão e preocupação com os outros, em vez de o sermos pelas atitudes egocêntricas, egoístas, gananciosas, odientas, preconceituosas, suspeitosas e agressivas que costumam dominar nosso pensamento." Arun Gandhi


O que eu quero em minha vida é compaixão, um fluxo entre mim mesmo e os outros com base numa entrega mútua, do fundo do coração. MARSHALL B. ROSENBERG´. Rosenberg, Marshall B.. Comunicação não-violenta (Locais do Kindle 173-175). Editora Ágora. Edição do Kindle. 

Enquanto estudava os fatores que afetam nossa capacidade de nos mantermos compassivos, fiquei impressionado com o papel crucial da linguagem e do uso das palavras. Desde então, identifiquei uma abordagem específica da comunicação — falar e ouvir — que nos leva a nos entregarmos de coração, ligando-nos a nós mesmos e aos outros de maneira tal que permite que nossa compaixão natural floresça. Denomino essa abordagem Comunicação Não-Violenta, usando o termo “não-violência” na mesma acepção que lhe atribuía Gandhi — referindo-se a nosso estado compassivo natural quando a violência houver se afastado do coração. Embora possamos não considerar “violenta” a maneira de falarmos, nossas palavras não raro induzem à mágoa e à dor, seja para os outros, seja para nós mesmos. Rosenberg, Marshall B.. Comunicação não-violenta (Locais do Kindle 198-203). Editora Ágora. Edição do Kindle. 

""UMA MANEIRA DE CONCENTRAR A ATENÇÃO 

"A CNV se baseia em habilidades de linguagem e comunicação que fortalecem a capacidade de continuarmos humanos, mesmo em condições adversas. Ela não tem nada de novo: tudo que foi integrado à CNV já era conhecido havia séculos. O objetivo é nos lembrar do que já sabemos — de como nós, humanos, deveríamos nos relacionar uns com os outros — e nos ajudar a viver de modo que se manifeste concretamente esse conhecimento. A CNV nos ajuda a reformular a maneira pela qual nos expressamos e ouvimos os outros. Nossas palavras, em vez de serem reações repetitivas e automáticas, tornam-se respostas conscientes, firmemente baseadas na consciência do que estamos percebendo, sentindo e desejando. Somos levados a nos expressar com honestidade e clareza, ao mesmo tempo que damos aos outros uma atenção respeitosa e empática. Em toda troca, acabamos escutando nossas necessidades mais profundas e as dos outros. A CNV nos ensina a observarmos cuidadosamente (e sermos capazes de identificar) os comportamentos e as condições que estão nos afetando. Aprendemos a identificar e a articular claramente o que de fato desejamos em determinada situação. A forma é simples, mas profundamente transformadora." 

"Os quatro componentes da CNV: 1. observação; 2. sentimento; 3. necessidades; 4. pedido. Primeiramente, observamos o que está de fato acontecendo numa situação: o que estamos vendo os outros dizerem ou fazerem que é enriquecedor ou não para nossa vida? O truque é ser capaz de articular essa observação sem fazer nenhum julgamento ou avaliação — mas simplesmente dizer o que nos agrada ou não naquilo que as pessoas estão fazendo. Em seguida, identificamos como nos sentimos ao observar aquela ação: magoados, assustados, alegres, divertidos, irritados etc. Em terceiro lugar, reconhecemos quais de nossas necessidades estão ligadas aos sentimentos que identificamos aí. Temos consciência desses três componentes quando usamos a CNV para expressar clara e honestamente como estamos." (from "Comunicação não-violenta: Técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais" by Marshall B. Rosenberg)